terça-feira, 20 de setembro de 2011

...e a palavra apanhada



Não sei se é o sono o que está perdido ou se a insónia me tem recuperada, mas a sensação semelha muito às noites primeiras na cidade, às noites aquelas nas que não podia conceber porque a cidade também não dormia, sumida num bulir eterno onde as luzes do dia eram substituídas pelos candeeiros elétricos do subministro público, mas a escuridão não era nunca chegada, as noites em que os viandantes diurnos eram substituídos pelos noctâmbulos que retomavam o seu andar sem rombo, num trasfegar contínuo que me volvia tola, airada, e me obrigava a passar as noites na janela, mirando ao imenso pátio interior no que se distinguiam telhados e as janelas iluminadas doutros insones agradando uma calma que nunca chegava, uma paz, um silencio.
As noites essas surpreendida de tanta vida a tantas horas, assustada da gente capaz de viver em qualquer momento.
Aquelas, quando longe do seio maternal da aldeia, da sua calma provocadora, do seu silencio litúrgico, afastada da proteção da casa familiar, não podia deixar de me sentir sozinha, desamparada, ansiosa por volver, por entrar, por acochar-me no manto protetor do fogar.
O fogar onde a um momento se apagavam as luzes, e quando isto era, o mundo inteiro se sumia na escuridão plácida e fetal, onde o silêncio que a acompanhava era interrompido por ruídos noturnos, nunca iguais aos do dia, ruídos que convidavam ao descanso, ao sonho ou ao medo. Mas ainda o medo convidava ao sonho e este ao sono em que existir.
E o sono era fácil. Acudia presto e sem problemas, ajudado pelo peso dos cobertores de lá, pelo calor dos lençóis de flanela, e animado pelo vento de vendaval que uivava fora, e os ramos do limoeiro batendo nos cristais da janela como braços pedindo permissão e decuplas a um tempo por uma visita inoportuna e a chuva repicando no telhado de Uralita, no mar que formavam as folhes das couves, no concreto do terraço deixando espelhos onde refletir a negrura das noites certas.
E nessas noites o sono fazia-se em mim coma uma palavra dada.

E desvirgando o silêncio apareciam pontuais os ruídos amáveis, conhecidos, amigáveis que mudavam pelo momento correspondente, chuva, vento, tronos, a maré, as ondas estrelando o mar contra as rocas, o moucho, campas, o lume, pinhas e ramos consumindo-se sob as lapas, o raposo, cães uivando, foguetes, grilos, gatos à janeira, mosquitos, a orquestra tocando. Todos distintos, todos familiares, os ruídos da aldeia.
E a cidade, ruidosa por sim própria, imersa num universo sonoro encriptado, indecifrável, ameaçador. Sonidos raros, espessos, pungentes, que a envolviam, insone e maldita, como os seus mil olhos abertos, as suas bocas de fome prestas a engolirem o medo dos que a mantínhamos esperta.
A cidade que te capta, te cativa e te devora, e a cidade e mais um ficam sendo a mesma coisa, e um já não pode fugir nunca, nunca, nunca, das suas ruas sedentas. Cada um dos meus anos debruçava-se ao infinito da noite, à escuridão absoluta buscando entre tanto caos algo familiar ao que me agarrar naquele naufrágio iminente e inevitável. Fechando com força os olhos e fazendo da volta das minhas pálpebras um projetor reproduzia por mim própria o baile de objetos que levava gravado, uma lâmpada de mesa com pé de mármore e pantalha de organza beije, o anjo de gesso colado acima do cabeceiro e que me tinha de guardar o sono, o espelho sem molduras, o estante das bonecas de porcelana, os dois cofres, azul e verde com rebites dourados, que vieram cheios de chocolatinhos e agora guardavam pulseiras e brincos, a caixinha com debuxos chineses, a cesta dos peites, o relógio despertador, o armário de quatro portas onde todos os monstros do mundo tinham cabida, as sombras dançantes nas paredes quando a iluminação elétrica fugia e ficava connosco a luz ténue duma candeia de sebo que pingava báguas tristes e de graxa na madeira do sobrado, a colcha com debuxos de ninhos de abelha, a alfombra de flores com um canto roído dos ratos.
E tudo isso me chamava, tudo me dizia "vem, vem" ao tempo que a minha sensatez enfraquecida me abandonava para sempre.
Mais agora volveu a marchar o sono sem ter recuperado a sisudez. Agora que sei outra vez quantas horas têm cada noite e que cor traz cada madrugada.

E não tenho, sequer, o consolo da poesia, pois já não há tal, e a qualquer coisa poetas malditos, chamais poesia.
Não fica em mim a possibilidade de aliviar a minha aflição lendo poemas sob as luzes macilentas de amanheceres abortados, porque tudo quanto escreveres não é mais do que versos asséticos, puros, descafeinados, versos brancos que falam de amores impossíveis, irreais, imaginários, versos doces, almiscarados, para donzelas imaculadas que se envergonham ante palavras reais, quotidianas, expressão de verdades mais humanas do que o amor inventado e ideal das vossa rimas.
Onde fica aquela que revela ao contestatário que temos dentro? Desapareceu a lírica de protesta, a que questiona, a que ergue, critica, satiriza, e pega na fronte do poder, do normal, do quotidiano, da malta aborregada, que faz vibrar as consciências dormidas e esperta as ganas de luta, e mudou em este sucedâneo nojento.
Morreram Valèry, Neruda, Rugama e Heraud, morreu Bukowsky e Ginsberg e Rexroth e Plath e Reverdy. Todos mortos.
E a poesia, morta também, descansa já no panteão dos homens presos, humanos bobos, esses que não são capazes de fugir da própria natureza e se adirem à fila da humanidade cibernética e autodestrutiva, assinando o seu armistício com a dor, a desgraça, a injustiça, voltando os olhos a um mundo de beleza artificiosa, de estética instrumental, de palavras horrorosas encadeadas para se converter em ópio que nos adormeça.
E ainda vos dizeis poetas porque a qualquer  coisa que fazeis chamais poesia....

Um comentário:

victor disse...

E unha narración fantástica, María. O único pero, se existe algún pero, é a diverxencia de criterio fronte á representación gramatical do galego usado. Porque acho que a loita, e non luta, pra resgardar a nosa lingua non tería que pasar por nos converter nun dialecto, por riba da politización e castelanización da RAG.