Não tenho reparo em te confessar para mim que a luz de Luanda abriu em dois o meu costado, que cada raio virou em faca feita dasbalas perdidas que atravessaram outrora moleques pretos e brancos, que meu sangue liberou a dor de tantas vidas, e cada morte fiz minha.
Não tenho reparo em confessar que lavei nesse sangue os meus pecados, que odiei a alegria dessas cores ameaçantes da minha perpétua melancolia tanto como odiava a tua pureza, a tua existência tão simples e a tua ausência, o meu ser apenas vivo, o teu coração doente, o meu coração ferido.
Desejante, antes de nada, de me desfazer de ti, dessa presencia que me perseguia ainda, consciente de tanto fazerem seis mil quilómetros ou dez centímetros. Consciente da zona de segurança entre a tua cara e a minha ocupar a franja estreita de Porto Aboim a Benguela vaguei pelo caminho comum dos nossos universos paralelos encerrados numa jaula, as portas abertas de par em par abanando ao vento, onde entravam e saiam livremente mil pássaros, onde os grilos solitários cantavam amanheceres doutros dias,quando o sol, ainda dourado, se insinuava no horizonte, e teus dedos como agulhas entreteciam a ayahuasca que caia do teu cabelo mal cortado para rematarem o lençol de fios de caramelo, mentres eu me hipnotizava com o reflexo da lua flutuando na flor daságuas. E do obscuro mais profundo daquele mar que me matava reagia a tua imagem deformada nos espelhos pelos que eu te observava quando esquecia a coragem necessária para te ignorar, para esquecer o teu nome, para deixar de cuidar com tal zelo do teu sono, de escutar de uma vez e por sempre ao narrador omnisciente que me falava de ti, afanado em me fazer acreditar que existias, que eras mais do que cinzas dentro do mesmo caixão onde morava a minha alma galvanizada de zinco.
Compreendi já mar adentro que o passado engolira o meu destino, e surpreendeu-me a noite aquela intentado decifrar as coordenadas do rumo do meu futuro, mentres as nuvens de agosto, aventadas de oceano, pariam água bendita na Terra da Fim do Mundo, e soprava um vento morno que aliviava o prurido causado pelas lembranças da tua pele adornada pelas sardas, das tuas mãos de pianista descansando no regaço, como avelainhas mortas, quando o tempo caprichoso se detinha a fazer noite no teu peito, e querendo saber do sabor da suor que te coroava, como a um Cristo renascido, salvador, perdi-me pelos outeiros abrasados do estio. Escorres-te entre os meus dedos, sensação de água fresca na minha sede insaciável, fluindo com regular constância, como a areia das horas que me minguavam.
Confesso-te que em Malanje, abraçada da fumaça, nunca te deixei de ver.
E foi lá, no mar de África, de tantas ondas que vi, quando me deu por pensar porque o mar de Luanda se pareceria a ti, que te imaginei proeiro da minha vida inconclusa, e da tua por nascer. E desde aquele instante absurdo, provocado pela ginja, naquele cerro de Malanje, não deixo de te chamar.
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